"Historiador não é calendário": os feriados como efemérides da memória
- Bianca Albuquerque
- 22 de abr. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 30 de abr. de 2021
Feriados são dias nos quais se suspendem as atividades laborais ou de estudos, ocorrendo no nosso país em função de motivos civis(federais, estaduais, municipais) e religiosos (via de regra pautados em datas alusivas ao cristianismo e catolicismo). E, em geral, esse são os dias em que qualquer estudante de História é cobrado enquanto registrador de eventos. Sendo isso prática tão corriqueira a ponto de gerar o ditado popular “historiador não é calendário”. Mas, é fato, licenciandos e bacharelandos em História, assim como os graduados, serem sempre indagados sobre a motivação e o significado do feriado. Curiosamente, nossa profissão tão escarnecida no presente contexto brasileiro é lembrada nos feriados, nos dando uma breve visibilidade aos “guardiões de episódios esporádicos da memória”. Eis a banalização de nosso ofício, posto nossa associação a meros anotadores de efemérides, a mantenedores do “retábulo”.
Aliás, retábulo é uma palavra pouco lembrada nos dias atuais, empregada para designar painéis feitos de madeira ou pedra, que são utilizados acima dos altares dos templos religiosos com pinturas ou entalhes em referências a temas sacros. Face a isso, você deve estar se perguntando: Então qual seria a correlação entre retábulos e feriados ao denominarem esse texto?
Em síntese se pode dizer serem os feriados produtos de disputas ideológicas – quer em âmbito político e/ou religioso – na construção identitária de um país, estado e município. Provavelmente aqui, em função do vocabulário e práticas cotidianas, o leitor deve estar atribuindo a autoria do texto a coisa de “esquerdista” e “satanista”. Sim, os vocábulos são antigos, contudo, estão sendo ressignificados e impostos a todo e qualquer sujeito que provoque questionamento e estimule o pensamento científico...
Retornando ao cerne de nossa questão, pergunto ao leitor se lembra do motivo de termos feriado no dia 21 de abril? É dia em memória de Tiradentes, “mártir”, “herói” da Inconfidência Mineira, habitualmente aparecendo em nossos livros didáticos a semelhança de um “patriarca” da ideia de república no Brasil. Esse personagem, que foi um militar e participou do movimento separatista em Minas Gerais, decorrente da cobrança de impostos (a chamada “derrama”) tradicionalmente tem sua imagem representada por um homem branco alternando-se em trajes militares ou vestindo longa camisola branca (na forca e corda passada em seu pescoço, com barba e cabelos longos, tendo grande semelhança às gravuras feitas de Cristo).
Contudo, se pedirmos para elencarem dois outros dias relativos à identidade nacional, ainda no mês de abril, é possível não obtermos respostas. Entretanto, o marco referencial da chegada dos portugueses ao Brasil é 22 de abril, enquanto que 19 de abril seria destinado a homenagear “os índios” (designação inadequada, generalizante e colonial, porquanto o correto sejam “nações indígenas”).
Sem nos alongarmos muito, convém ainda fazer um exercício e questionar se há recordação doutros movimentos revoltosos no período colonial? Talvez para alguns ocorram citar Aclamação de Amador Bueno(1641 na Vila de São Paulo), Revoltados Mascates (1654 na Capitania de Pernambuco), Revolta de Beckman (1684 no Estado do Maranhão Grão-Pará), ou ainda nas Minas Gerais a Guerra dos Emboabas (1707 a 1709) e a Revolta de Felipe dos Santos (1720).Se apontaram algum desses, lhes parabenizo por recordarem das aulas de história do Brasil, ao mesmo tempo os desiludo, por se tratarem de revoltas de caráter distinto a Inconfidência Mineira. Isto porquanto tais manifestações serem tidas como lutas “nativistas”, ou seja, demonstrativos de descontentamento
com as ordens da Coroa Portuguesa, contrapondo interesses dos portugueses do reino e os portugueses da colônia (FIGUEIREDO, 2014). Ao passo que a Inconfidência Mineira, foi um movimento separatista, proponente da criação de um país novo e independente sob a influência do ocorrido com as Treze Colônias Inglesas e a fundação dos Estados Unidos (FURTADO, 2001).
Então, torno a pedir para fazerem a citação doutro movimento separatista, ou de consciência nacional a exemplo da designação dada por Boris Fausto (2001). Há possibilidade de indicarem a Confederação do Equador (1824), Revolta Praieira (1848 a 1850) ocorridas na Província de Pernambuco ou mesmo a Guerra dos Farrapos (1835-1845) no Sul. Ao que lhes direi estar ocorrendo um equívoco, pois embora elas pregassem a perspectiva de instauração da república, aconteceram já no Brasil Independente e Imperial.
Percebam serem todos os movimentos comentados nos últimos dois parágrafos não “nativistas”, mas, se qualificarem por atuações com pouca visibilidade às pessoas pobres, aos trabalhadores livres ou escravos, tampouco se alongarem nas inferências aos negros e indígenas. Observado isso, cabe lhes inquirir se temos algum feriado em função da Conjuração Baiana? A contestação será negatória. A Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates ou também denominada Revolta dos Búzios, se deu na Bahia no ano de 1798, por isso caracteriza ainda no período colonial. A maior parte dos seus quadros contou com homens negros libertos e escravizados, mestiços e branco pobres atuantes como alfaiates, sapateiros, praças. Suas influências eram as “francesias” como afirmaram Schwarz e Starling (2015) e a Revolução Haitiana tal qual nos assevera Silva (2018). Além do caráter separatista, propunham alforria e mudanças na ordem social. Entretanto, essa é não é uma efeméride validada pelo discurso republicano (VALIM, 2020), muito menos a falsa ideia de democracia racial e país cordial, por isso, esquecida do nosso painel memorialista.
Feitas essas ponderações, me resta encerrar afirmando que o mosaico deve ser pensado, sobretudo quanto aos desvãos. E por respeito aos meus colegas de profissão, recordar o quão incômodas são aos historiadores as admoestações em função desse retábulo. REFERÊNCIAS FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editorada Universidade de São Paulo, 2001.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Maquiavelianas brasileiras: dissimulação, ideias políticas e revoltas coloniais (Portugal, séculos XVII e XVIII). Tempo, Niterói, v. 20, 2014 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413- 77042014000100405&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 Abr. 2021. Epub Dec 19, 2014.https://doi.org/10.5533/TEM-1980-542X-2014203604eng.
FIGUEIREDO, Luciano R.A. Maquiavelianas Brasileiras: dissimulação, ideias políticas e revoltas coloniais (Portugal, séculos XVII e XVIII).Tempo (Niterói. Online) , v. 20, p. 1-24, 2014.
FURTADO, João Pinto. Uma república entre dois mundos: Inconfidência Mineira, historiografia e temporalidade. Rev. bras. Hist., São Paulo , v. 21, n. 42, p. 343-363, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 01882001000300005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 22 Abr. 2021. https://doi.org/10.1590/S0102-01882001000300005.
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SILVA, Raphael Zena Rocha da. O ensino de história e o processo de independência do Brasil: alternativas para outras abordagens. 2018; Trabalho de Conclusão de Curso; (Graduação em História) - Universidade de Brasília, 2018, 68 p.
VALIM, Patrícia. Um crescendo de tomada de consciência: a Conjuração Baiana de 1798 no primeiro centenário da Independência do Brasil. Intellèctus (UERJ. ONLINE), v. 19, p. 141-176, 2020.
Dra. Bianca Albuquerque
Professora Associada Nível 02, regime de dedicação exclusiva, lotada no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre, associada da ANPUH AC/RO e ABPN. Graduada em História pela Universidade Federal do Acre (1999) e em Direito pela União Educacional do Norte (2008). Mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Doutora em História Social pela USP (2015) com o título" A Cavalo dado não se olham os dentes": O Bolivian Syndicate e a questão do Acre na imprensa (1890 a 1909). Possui experiência na área de História, com ênfase em História Latino-Americana, História da Imprensa Brasileira, História Ambiental, História e Cultura Afro-Brasileira, História do Brasil, História da América e Metodologia Científica, Formação Social da Amazônia, História Econômica, História Moderna, História Antiga e Estágios.
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