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Crônica dos buracos na cidade lunática

  • Foto do escritor: Andrisson Ferreira
    Andrisson Ferreira
  • 6 de abr. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 8 de abr. de 2021


Fotografia: Trajeto lunático


Exuberantes crateras que adornam as ruas despavimentadas, teus aniversários já conto mais de cinco. Inicio esse texto em uma homenagem aos esboços de veredas da cidade Rio Branco e seus adereços grandes, pequenos, largos, estreitos, rasos, fundos, perigosos ou inocentes buracos, afinal, nunca estive tão certo de viver no “mundo da lua”. Quem diria, buracos, crateras e poças virarem poesia. Poesia rancorosa. Queria eu perder meu tempo escrevendo sobre as exuberantes ruas caminháveis deste recinto.


Descobri! RUA é sigla para Resto, Utopia e Amnésia – R-U-A. Pedaços de asfalto que sobram, desejos que parecem improváveis de direitos mínimos e tão distanciados, esquecimentos de poderes estatais que se fizeram invisíveis, esqueceram os pobres, os periféricos. Seguramente, uma cratera na rua é uma boca que grita: CORRUPÇÃO!


Cada buraco é um integrante do coral da Sinfonia Acreana do Descaso (SAD). Os carros, que se arriscam a bailar, a cada “trombada”, emitem sons deselegantes e onomatopéicos: “pow”, “boin”, “trá”. Alguns se retorcem, dançam nas ruas em um verdadeiro show anafilático esboçando PERIGO.


Fotografias: Descaminhos da dignidade


São várias histórias para narrar, há até mesmo quem diga que “O buraco do vizinho é mais bonito”. Imagine a cena ao avistar um bairro com “buracos classe média”, que rasos, não impedem o tráfego e não acumulam lama. Conformismo. “Essa rua tá é boa”, falou o senhor que deu indícios de morar na “Rua dos Bobos”, talvez o número de sua residência seja “0” em apologia a buraco.


“Se essa rua fosse minha” é um pesadelo.


São notáveis buracos, buraquinhos, buracões. Neste último caiu um “uber”, tão tristonho. O vi desesperado e ofereci ajuda, era sete da manhã, minha sorte na empreitada é que apareceu um roçador para ajudar no esforço de empurrar o “auto-imóvel” para fora da vala. Logo em vão, o parapeito de aço do carro se agarrou na cratera como num encontro romântico. Foi um verdadeiro “amasso”! Lama, sofreguidão e acelera! Nada de alívio...alguns buracos são possesivos, só largam com guincho. Um desencontro, menos um dia de trabalho e mais dias para concertar na SAD. Sim, não estranhe a grafia, concertar com “C” com seu carro amassado nas ruas de White River, na sinfonia do descaso emitindo sons de rodas e buracos, parapeitos e crateras, numa só canção, para fazer novas corridas e pagar o estrago ocasionado ao seu veículo.


De fato, buracos ensinam histórias, humilhados, não pediram pra nascer. Tão tudo órfão, seus mantenedores sumiram, tudo sem registro, sem nome, mas não sozinhos. Dia a dia se unem numa força admirável, resilientes se juntam aos companheiros formando um só corpo, um só buraco, uma nova cratera. Daqui a pouco vira até sinônimo de resiliência – “buraque-se”!


Fotografia: Tem uma rua no buraco


Mas te convido, veja do ponto de vista de um buraco, rebaixado ao desnível mais humilhante da rua, ninguém conhece sua solidão, tampouco reconhecem seus méritos diminuindo os sérios risco de acidentes por velocidade, uma verdadeira lida diária ao ser macerado por várias rodas, pés, tudo que caminha, rola, rasteja na rua.


Fotografia: Aqui não caminham só pés


Nem a polícia se arrisca mais a passar nessas trincheiras. Trabalhador que passar mal e precisar de atendimento ambulante com urgência vai “fazer passagem” para outro plano porque, para a ambulância, a passagem dissolveu no asfalto. Tá, ok, já me disseram que é papelim. Desculpe-me se ofendi os asfaltos das grandes avenidas nas megalópoles que importam nesse rincão desordenado que tem por lema “ordem e buracos”, (erro de digitação), eu quis dizer ordem e progresso (tô abrindo outro parêntese para dizer que onde lê-se “ordem” se acrescentam muitos risos).


Tem buraco em todo lugar, só não jorra dinheiro, mas escorre uma grana besta, aquela verba investida se esvai nas centelhas de poças. Aqui deveriam investir gentilmente nas placas que sinalizam “PERIGO”.


O certo é que cada um cuide do seu buraco. Quem não conhece um buraco em Rio Branco não é rio-braquense. Já são até referências: “eu moro na casa com um buraco na frente”, “Passando aquele buraco, no outro”. Aliás, caminhar tá virando um verdadeiro alpinismo, quem precisa de crossfit com esse verdadeiro sobe e desce?


Outro dia, o rapaz que corta meu cabelo, pobre injuriado, enquanto eu visitava seu salão, em tom decepcionado me aludiu do decréscimo de sua renda - motivo: os clientes motorizados que gostam do seu trabalho nem se arriscam a enfrentar as crateras, senão são dois cortes, um no cabelo e outro no orçamento tendo que reparar carro batido.


Minha irmã, que me acompanhou no ensaio fotográfico destes modelos, exclamou:


- “CHEGA!”.


A prerrogativa era justa, a de que eu não terminaria nunca de registrar tanto buraco.


Mas não vou ser tão pessimista, vale lembrar, alguns buracos não são tão vilões, transmitem esperança, esperança em acreditar que um dia saneamento básico não será uma esmola. Pífia esperança!


Fotografia: Contraste


Decerto, há buracos pra todos os gostos, eu mesmo nunca escrevi tanto buraco na minha vida, mas espero, nesses tons satíricos, enfrentar o descaso do poder público frente aos direitos básicos que são assegurados na nossa Constituição. E, espero também, piamente, que o cara do carro prata que me pediu ajuda domingo retrasado pra sair numa rua decente, tudo isso pra escapar das ruas do bairro, tenha conseguido sair salvo. E sem remorso, pelo fato de eu ter falado: - “DESISTA!”. A verdade é que essas cicatrizes asfálticas são fervorosas, pois sabem que mesmo se maquiadas com uma leve camada de piche, ressurgirão renovadas na próxima chuva. Resilientes buracos, cheios de entulhos, lamas e descasos.


Fotografias: Andrisson Ferreira

Registros feitos no bairro Chico Mendes, Loteamento Altamira, Rio Branco, Acre, Brasil, 2021.

2 Comments


Paulo Azevedo
Paulo Azevedo
Apr 06, 2021

É isso mesmo Andrisson! protestamos de todas as forma...

Ao ler a crônica, fez-me lembrar do poeta satírico Gregório de Matos Guerra, alcunha Boca de Inferno, denunciando através de poemas, as mazelas na sociedade brasileira do século XVII!!!

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Andrisson Ferreira
Andrisson Ferreira
Apr 06, 2021
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Obrigado, Paulo, pela sua leitura! Isso mesmo, vamos nos expressando para sermos ouvidos.

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