QUANDO PELA ARMA SE MATA UM INOCENTE: o caso José Kairala
- Jadson Bernardo
- 5 de abr. de 2021
- 7 min de leitura
A Liberdade, palavra que no século XXI e no Brasil ainda se encontra incompreendida. No significado mais simplista, é uma condição do homem de “decidir ou agir segundo a sua própria determinação” (FERREIRA, 2001). Quanto a democracia, segundo Ubaldo Ribeiro (1986), é um dos graus básicos e fundamentais para a garantia de estabilidade e o vigor das instituições políticas.
Na constituição de 1988, é uma garantia pétrea através do artigo 5º. Ao mesmo tempo, o livre-arbítrio continua a ser mal compreendido por grupos sociais radicais e ultraconservadores, que defendem mudanças de regimes que não o democrático, em defesa de uma suposta liberdade incompreendida, mas que no seu bojo, endossa valores não democráticos, e sim, ditatoriais. Porém, esta liberdade democrática nunca foi absoluta. Pode-se pensar, decidir e falar, mas o pensamento dever-se-ia enquadrar nos valores pétreos e não instigar a instabilidade.
Segundo Darcy Azambuja, no regime democrático, “[...] ela [a liberdade] não pretende dar a cada um a liberdade absoluta, o poder de fazer tudo e só o que bem entendesse. Nem isso seria liberdade, mas anarquia”. (AZAMBUJA, 2003, p.222). Mesmo assim, a democracia moderna é o regime que maior abertura concedeu aos seus cidadãos, contudo, o que permite é “[...] fazer tudo o que não prejudique a liberdade dos outros”. No ano de 1963, o Congresso Nacional, provou os limites institucionais e profundos deste significado. Os fatos que seguirão, foi o princípio que desaguaria poucos meses depois, como o Golpe Civil-Militar de 1964.
Na década de 1960, a recém capital, Brasília, viveu momentos de tensão ao longo dos seus primeiros anos. A eleição de Jânio Quadros e sua renúncia, o imbróglio envolvendo a chegada de João Goulart, a adesão do Brasil a uma nova forma de governo (o regime parlamentarista ou “golpe parlamentar”), as crises inflacionárias e a dívida externa.
Em 1963, viveu o país a volta ao regime presidencialista, resultado do plebiscito convocado pelo Congresso Nacional. Chegado ao final deste ano, a política brasileira teria um pequeno afã de tranquilidade institucional, mas a “casa do povo” viveu o mais novo episódio: o confronto entre inimigos políticos no parlamento, acabaria em confusão generalizada, tiros e o assassinato de um senador no litígio: José Kairala (PSD-AC), então senador pelo Acre e suplente de José Guiomard dos Santos.
O sinistro ocorreu no dia 04 de dezembro de 1963, quando o Senador Arnon de Melo (PDC-AL), entrou em confronto com o adversário político do mesmo estado, Silvestre Péricles (PST-AL). Na capa do Jornal “Correio Braziliense” no dia seguinte destacava: “Tiro de Arnon de Melo mata Kairala”.
Segundo o jornal, Arnon de Melo havia pedido a palavra no plenário na primeira sessão do dia, iniciado às 15 horas, motivado a defender-se das acusações proferidas pelo senador rival em que o chamou de “ladrão”. Seguiu a reportagem narrando que Arnon queria falar cara a cara, pois havia sido desafiado pelo desafeto que o denominou como “não corajoso o suficiente” para tal, inclusive ameaçando-o de morte. Porém, o que aconteceu foi o contrário. Arnon de Melo (pai do ex-presidente e atual senador Fernando Collor de Melo) desferiu os tiros no pleno do Senado Federal.
Por azar, José Kairala estava no seu último dia como senador titular, devendo entregar a Guiomard dos Santos, o titular da vaga, quando acabou atingido com os tiros. Mas, a sessão “bang-bang” continuava com os senadores sentados abaixando-se, e outros, como José Agripino (UDN-PB), correndo nas mãos de Péricles e tomando o revolver. Assim, os guardas do Congresso, ordenado pelo presidente da sessão, dominou-os e foi ordenado a prisão de ambos, anunciando a abertura de processo em flagrante.
Apesar da tentativa de acalmar os ânimos, perceberam somente José Kairala caído depois, levado em estado grave às pressas para o Hospital Distrital do Distrito Federal. Ficou descoberto ainda, que o presidente do Senado, Moura Andrade (PSD-SP), havia pedido atitude de ambos, “serenidade e desarmamento de espírito”, visando conter qualquer abertura de uma nova crise política no país.
Com o escândalo à tona, o governo João Goulart (PTB) reagiu. Na mesma edição do dia 5 de dezembro, reproduziu a fala do ministro da Justiça, Abelardo Jurema, que disse aos jornalistas que a mesa diretora do senado não deveria ter permitido os senadores de se encontrarem, frente a frente, já sabendo que ambos eram mais do que adversários, e sim, inimigos políticos de longa data. Assim, definiu que o episódio representava a “falência da Mesa do Senado”.
Já João Goulart, segundo interlocutores do Planalto à época, informaram que recebeu a notícia com surpresa e lamentou o acontecido, designando o ministro da Justiça ao hospital para informá-lo acerca da saúde do senador acreano. Já no Planalto, os jornalistas constataram que o assunto era o tema do momento, todos curiosos para saber a visão dos fatos pelo presidente da República.
No Senado Federal, a notícia da morte do colega foi levada ao conhecimento às 22 horas e 30 minutos, sendo o corpo exposto na instituição. Antes, nas sessões do Congresso, repercutiu a morte do Senador pelo Acre, levando o deputado federal Hamilton Prado (PTN-SP) disferir o discurso: “Acho oportuno retornamos a uma resolução que há tempos a Mesa cogitou estabelecer, no sentido da proibição do porte de armas no recinto do Congresso [...].” (p.3).
Na mesma fala reproduzido argumentou ainda: “[...] Infelizmente, em virtude da formação democrática de alguns dos homens públicos que não compreendem que os seus problemas têm de ser resolvidos à base da discussão livre que numa democracia cada qual tem os direitos de externar seus pensamentos e opiniões a respeito de todos os problemas [...]”, pediu o deputado paulistano soluções de ambas as mesas diretoras para não gerar mais tipos de violência “dêsse naipe”: anos mais tarde ocorreria novos duelos titânicos na casa legislativa. (Ibid.).
O Correio Braziliense anunciou a morte do político pelo Acre na segunda página. Na breve biografia, o senador José Kairala, nascido em Manaus no ano de 1924, foi considerado um dos mais jovens senadores à época, aos 39 anos de idade. Sua profissão era de comerciante exportador. Na política acreana foi prefeito da então cidade de Brasília (atual Brasiléia) por três anos. Foi visto e considerado na arena política local como um dos candidatos à sucessão do Governador José Augusto de Araújo. No mandato de senador da República entre 1º de junho a 4 de dezembro, propôs um projeto de lei para elevação do Território Federal de Rondônia a categoria de Estado. Deixava a viúva e três filhos: José Kairalla Neto, Carolina Maria e Tadeu José, respectivamente, 8 anos, 6 anos e 3 anos. No hospital, tivera quatro paradas cardíacas, mas apesar da luta por 40 minutos, o falecimento se confirmou.
No caso de Arnon de Melo e Silvestre Péricles, ambos foram presos e levados, respectivamente para os QG (Quartel General) do Exército e Aeronáutica. As armas foram apreendidas para averiguação.
A reportagem do dia 05 de dezembro, também informava uma espécie de boato, de que, Arnon de Melo havia chegado ao Congresso desarmado e recebeu de um dos filhos o objeto do crime – não revelando qual dos filhos: “Como se recusasse a ser revistado pelo Serviço de Segurança, que não permitiu a entrada sem a constatação no que estivesse desarmado, o filho do senador Arnon de Melo mandou chamar o pai que se encontrava no recinto do Senado e lhe entregou a arma”. (p.4).
Também constou que a segurança estava atento a filha do senador Péricles, mesmo tendo sido revistada. Porém, os seguranças falharam e o parlamentar por muito pouco não espalhou uma chacina no parlamento, como já dito acima.
Apesar das investigações e do processo judicial, ambos os políticos não foram punidos, prevalecendo a imunidade parlamentar como defesa. Arnon de Mello inclusive voltaria a ser senador no período do regime ditatorial, falecendo na década de 1980 no referido cargo. Já o senador Silvestre Perícles militaria no MDB, mas não lograria vencer novas eleições em Alagoas. Já a viúva do senador acreano assassinado, no dia 16 de março de 1965, entrou com uma ação na justiça pedindo $ 100 mil dólares do autor do disparo, valor que seria equivalente a uma apólice de seguro, segundo a reportagem do “Diário de Notícia”. Afirmou ainda, que a viúva não possuía os recursos suficientes para manter os filhos e pediu para o responsável ser condenado a cobrir o valor do seguro, abrangendo a educação e a instrução dos filhos menores até a maioridade, vitória obtida no âmbito do primeiro grau.
Dentro desta ótica, a história como uma construção linguística une-se ao passado para designar uma leitura de qualquer fenômeno de investigação. As interpretações que emergem não significam a recuperação da realidade, ao contrário, manifesta-se na “[...] perspectiva do historiador como ‘narrador’” (JENKINS, 2001, p.31) condicionando nossas próprias visões a partir de um presente. Assim, os fatos históricos apresentam ao presente a possibilidade de reconstrução e interpretação pelo viés de informação sobre um passado. Neste aspecto, os jornais de épocas são fontes históricas, na maioria das vezes ainda incompreensível, em outras devidamente manipuladas. No entanto, são capazes na construção da narrativa questionar o passado para perceber as atitudes do presente.
Portanto, o caso de José Kairala representou a máxima da impunidade, deixando como lição a incapacidade psicológica e mental de parte da sociedade brasileira em manusear livremente a qualquer armamento, significando risco de ocorrência de tragédias em larga escala, partindo do princípio da “legítima defesa” ou da “imunidade parlamentar”. O avanço ultraconservador nos últimos anos em nome do armamento da população para alta proteção poderá ter um custo altíssimo, com o já agravado estado de violência que impregna a população brasileira e o reino do autoritarismo político atingindo as instituições republicanas e fragilizando o próprio sistema democrático. Eis um caso de um inocente, que perdeu a vida em nome da suposta “LIBERDADE”.
REFERÊNCIAS
AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência política. 15 ed. São Paulo: Globo, 2003.
CORREIO BRAZILIENSE. Arnon chegou ao Senado e recebeu arma do filho. Ano: CLIII. Brasília, 05 de dezembro de 1963, nº 1088, p.4.
CORREIO BRAZILIENSE. Lino Aconselhou a Péricles a uma atitude serena. Ano: CLIII. Brasília, 05 de dezembro de 1963, nº 1088, p.1.
CORREIO BRAZILIENSE. Ministro da Justiça afirma que o Incidente representa falência da Mesa do Senado. Ano: CLIII. Brasília, 05 de dezembro de 1963, nº 1088, p.2.
CORREIO BRAZILIENSE. MORTE NO SENADO: Tiro de Arnon mata Kairala. Ano: CLIII. Brasília, 05 de dezembro de 1963, nº 1088, p.1.
CORREIO BRAZILIENSE. Parou três vezes o Coração. Ano: CLIII. Brasília, 05 de dezembro de 1963, nº 1088, p.2.
CORREIO BRAZILIENSE. Repercute intensamente no plenário da câmara a trágica ocorrência do Senado. Ano: CLIII. Brasília, 05 de dezembro de 1963, nº 1088, p.3.
CORREIO BRAZILIENSE. Goulart surprêso com o Incidente do Senado. Ano: CLIII. Brasília, 05 de dezembro de 1963, nº 1088, p.2.
DIÁRIO DE NOTÍCIA. U$$ 100 mil por matar Kairala. Ano: XL. Porto Alegre, 16 de fevereiro de 1965, nº 291, p.1
JENKINS, Kheith. O que é história? In: JENKINS, Kheith. A História repensada com ousadia. São Paulo: contexto, 2001. p. 36-52.
O GLOBO. Pai de Collor, senador alagoano Arnon de Melo matou colega com tiro em plenário, há 55 anos. Disponível em: <https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/pai-de-collor-senador-arnon-de-melo-matou-colega-com-tiro-em-plenario-ha-55-anos.html> acesso em março de 2021.
Outros periódicos: Disponível em: <memoria.bn.br> acesso em março de 2021.
RIBEIRO, João Ubaldo. Política: quem manda, por que manda, como anda. 11 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
STJ, Ação rescisória - GB nº 485, 20 de maio de 1975.
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