MULHERES PESCADORAS DE CAMARÃO: protagonistas das margens de Cutajú-Açú
- Enos Sarmento
- 30 de abr. de 2021
- 8 min de leitura
Rio Cutajú-Açú, que banha, alimenta, empodera as pescadoras, caminho de mulheres que se fazem protagonistas em suas histórias nos recantos amazônicos que poucos enxergam...
Gravação: Enos Sarmento
Amazônia, ah, a Amazônia! Grande parte desta que é considerada o pulmão do mundo acomoda cerca de 59% de seu vastíssimo território (chamado de Amazônia legal), nos limites de nosso país, concentrando quase 100% de sua totalidade na região norte. Mãe acolhedora, sustentando em seu estuário incontáveis grupos sociais dos mais diversos seguimentos; de indígenas a quilombolas, de ribeirinhos a pescadores, todos com modos de vida, de cultura, de costumes próprios, convivendo de maneira múltiplas desde as margens dos rios ao longo dos sertões.
O convite de hoje é para conhecermos a trajetória de vida de protagonismo feminino, de um grupo que habita esse sertão: as mulheres pescadoras de camarão da Família Moraes, da comunidade Cutajú-Açú, que ganham a vida desenvolvendo esse trabalho árduo, mas com muita maestria e autoridade. A comunidade está localizada na ilha de Arapiranga, que pertence ao território do município de Barcarena, hoje é constituída por cerca de 80 famílias que estão divididas nas margens esquerda e direita ao longo do curso do rio.
Vamos navegar pelas histórias de protagonismo de algumas dessas mulheres amazônidas, dentre elas estão:
"Dona Antônia Moraes, Dulcinéa Moraes e Rosilene Moraes, as mulheres Moraes que possuem uma relação familiar de Tia, sobrinha e Tia avó. Dona Antônia é tia de Dona Dulce que por sua vez é tia de Dona Rosilene.
Tudo começou com Dona Antônia, a época da entrevista, em 2020, com 87 anos. Ela migrou com seus pais de uma comunidade vizinha chamada Ilha das Onças, com apenas dez anos de idade, em busca de novas alternativas de trabalho. Cresceu na comunidade Cutajú-Açú, casou-se com Manoel Lopes e juntos tiveram oito filhos. Dona Antônia percebeu que a região se mostrava bastante propícia para a atividade pesqueira, com muitos igarapés praticamente intocáveis e beiras raramente utilizadas para pesca do crustáceo, sendo uma das primeiras a desenvolver a atividade na região. O trabalho inicial foi o cultivo de pequenos roçados e a extração de látex, inclusive ela me falou que por muito tempo trabalhou nas seringueiras, tinha seu próprio espaço de extração do produto, que segundo ela: “Ai de quem se metesse a besta pra cortar minhas seringueiras meu filho (risos).
A pesca de camarão era feita por lanciação (sistema em que duas pessoas arrastam uma rede nas margens dos rios por algum tempo e em seguida a despescam no barranco apenas para o próprio consumo), pois seu valor de mercado era muito baixo, pelo fato do mesmo ser encontrado em grande fartura. Segundo ela: “Quando eu cheguei lá, meu irmão, vou lhe dizer, que era uma fartura tremenda, cotia saía no quintal, veado aparecia no lado da casa” (...). Segundo dona Antônia, o matapi, principal instrumento para a pesca do camarão, até então, não era conhecido na comunidade, continuando seu relato:
"Pesca de matapi não tinha não, nessa época não! Quem trouxe a pesca do matapi pra lá foi “Pilicarpi” pai do “Zé Barro” não tinha pesca de matapi eu não sabia o que era matapi pois onde eu morava não existia isso não, aí a gente morou, aí condo foi cum dois ou três ano ou até mais, aí o “Pilicarpi” veio pra lá trouxe uns matapi colocou lá quando ele puxava meu filho chega tá morto dentro do matapi; camarão, não era filho de camarão não, cê sabe o que eu fazia quando nós queria camarão?"
Dona Antônia, continuou relatando sobre como o Matapi chegou até a comunidade:
"Nós ia lanciar, na praia, eu com minhas irmãs, nós ia lanciar na praia, aí quando o Pilicarpi chegou lá, aí pronto a gente viu né, aí todo mundo aprendeu a fazer matapi com eles lá, Pilicarpi e o Chuim fiho dele que era o mais velho, nome dele era Raimundo ele foi até meu padrinho de fogueira né, e ai ele fez o matapi e a gente aprendeu com ele, e com o Raimundo né, meu padrinho Raimundo eaí nos fumo pesca..."
Ela conclui declarando sobre o destino do camarão que pescava:
"O pescador que mais tinha matapi tinha dez e não tinha porque ter mais, era só frito, não tinha viveiro e não tinha necessidade de mais, porque era pra fritar né e aí enchia aqueles “panerão” levava pra Belém mais aquilo não tinha valor sabe, não tinha valor! Mas né a gente como sabe como é o pobre né? Pois é, e a gente continuava assim".
A Dona Dulcinéa Moraes da Costa nasceu na comunidade da maneira comum a época: de parto em casa, não apenas ela, como também todos os seus onze irmãos, e desde muito cedo já trabalhava, haja vista que a família era grande, e o sustento da casa também. Dulcinéa cuidava dos irmãos menores em casa, enquanto sua mãe desenvolvia com seu pai o sustento, principalmente na pesca. Sua mãe, dona Otacília Moraes, hoje com 85 anos, em avançado estado de Alzheimer, dispunha do espaço fixo para montagem de seu varal e ali capturava o que seria parte do sustento de seus filhos: o camarão. Dulcinéa me contou que desde cedo teve contato com a pesca, aprendeu a fazer matapi, isca de camarão, aprendeu o que é uma maré boa pra camarão. No relato de dona Dulcinéa, com 69 anos, relata:
"Porque eu aprendi com meu pai ne, minha mãe, porque nessa época que eu me criei to com 69 anos, eu aprendi a gente vivia assim diretamente da pesca de matapi a gente tirava assim o açaí mais era assim só pra uma intera do dinheiro do camarão porque a gente vivia diretamente de pesca do matapi, era! Principalmente pra cá pra baixo todos viviam assim de pesca de matapi, aí eu me criei nesse sentido ne, pescando de matapi, fiquei jovem sempre pescando casei sempre pescando, agora depois que me aposentei aí que eu parei mais de pescar, é! Mas trabalhava somente mesmo, o meu marido aprendeu a pescar comigo, porque ele era apanhador de açaí, não tinha a prática de pescar e eu já tinha aquela prática de pescar né, quando o camarão não dava, fazia na praia, pescava na praia quando aí tem um tempo que era da praia, tem um tempo que aí ele falha pelo meno agora olha esse tempo, esse tempo ele tá falho assim num dá lá essas coisas não, e tem um pouquinho que tá dando".
Dulcinéa dividia o dia entre as tarefas domésticas e o trabalho da pesca:
“Eu ajudava o meu marido, trabalhei muito isso que eu digo, trabalhei no tempo do meu pai com a minha mãe, trabalhava e quando eu casei fiquei sempre trabalhando. Cuidava dos meus dois irmãos, ai a mamãe trabalhava no mato trabalhava na pesca ne ai eu ficava com os menino em casa, aí até hoje eles me respeita, um já morreu mais o outro que tá vivo me respeita como que eu seja mãe dele”
O irmão de Dona Dulcinéa Moraes casou-se com Isaura Moraes, e juntos tiveram onze filhos, dentre eles Rosilene Moraes, sobrinha de dona Dulcinéa, pescadora profissional que também foi ensinada pela mãe, dona Isaura Moraes. Perguntei à dona Rosilene, pescadora mais nova na linha geracional, como é o processo da produção do matapi, ela prontamente respondeu:
“Nós aprendemo a fazer matapi com ela (mãe); a gente tira a tala, que é do jupati, põe pra secar e depois de dois meses, um mês, depende do sol, pra ela ficar bem sequinha um mês ela fica bem sequinha; o jupati a gente tem que tirar os braços que não tão verdes pa poder prestar, e também tirar a grachama pra faze o arco do matapi aí a gente tira e vai limpar, o que é limpar? Tirar a bucha né da tala, aí depois de tirar da bucha a gente vai medir todinho e vai cortar e vai, compra o cabinho que é justamente cabinho que a gente fala né e vai tecer o matapi, antes a gente usava o cipó morcego pra tecer, mais agora a gente usa o cabinho de plástico”.
Dona Rosilene, de 41 anos, explica como fazer a isca para pegar o camarão:
“a gente pega o babaçu que é a comida dele né tira a folha, uns eles faço cum saco plástico, como em Abaetetuba, o nosso já é a folha do guarumã aí a gente isca no varal, amarra e vai despescar o camarão, e não pode ir de maré grande, o matapi tem que passar 24 horas na água e o varal precisa ser bem feito pra poder prestar, se o matapi for na beira precisa de boia pra ficar boiado e coloca dentro do matapi, se for na praia não precisa usar boia”. Foi um trabalho que eu sempre gostei, não era todo dia, não era toda semana, mais pelo menos de quinze em quinze dias a gente tinha um dinheirinho sabe (...)”.
VARAIS DE PESCA - praias na saída do rio Cutajú-Açú

Fotografia: Enos Srmento
Com as famílias crescendo, e novos moradores chegando, o espaço foi diminuindo, assim como a pesca do camarão se tornou uma atividade cada vez mais recorrente, pois o produto muito se valorizou na capital, sendo considerado um complemento na renda da família junto com outras atividades como o cultivo dos roçados e a extração do látex. Desta feita, algumas regras foram necessárias como: a divisão das beiradas propícias para pesca, em que cada família tinha seu limite de beiras territoriais e não podia extrapolar e invadir o território vizinho; até nas praias foram dados limites para cada um. Dona Antônia me contou que como uma das primeiras a chegar na localidade, ela e seus familiares tinham os maiores espaços de pesca, tanto no rio como na praia.
Dona Rosilene tem doze irmãos e os quatro primeiro são todas mulheres incluindo ela, a filha mais velha, desde muito cedo ela era que ajudava a mãe no ofício da pesca, assim como dona Dulcinéa que já desenvolvia a pesca de maneira precoce. Já que o trabalho era o único meio para obter o que desejavam. Com isso foram construindo suas identidades e acima de tudo suas autoridades a partir daquele espaço.
Depois de casadas o desafio foi ainda maior, haja vista que, como detentoras de um ofício herdado de família, a missão a partir daquele momento seria de trabalhar tendo em vista basicamente dois desafios: sustento dos filhos e nas despesas da casa. Elas tinham que dividir o tempo de amamentar e de fazer poqueca (isca de camarão feita basicamente de babaçu e folhas de guarumã, planta nativa da região) para iscar o matapi quando a maré baixasse. Obviamente, quando tinham bebês, jamais se envolviam com as atividades pesqueiras, mas sim repousavam e depois de um período de quarenta dias voltavam ao seu ofício. Dentro desse período a figura paterna se tornaria fundamental, principalmente no quesito sustento da casa, mas logo após o período de recuperação a missão continuava.
Diante de toda essa responsabilidade, hoje, essas mulheres são vistas dentro da comunidade com status de chefas de família, e suas autoridades não são contestadas, cabendo a elas não apenas a missão de criar os filhos, mas de proverem o sustento da casa também. É evidente que todas as habilidades adquiridas durante longos anos de pescaria permitiu a elas um potencial protagonismo em seu território, com isso, essa autoridade que foi construída debaixo de muito suor e superação, dificilmente é contestada dentro da comunidade.
Logo, tendo em vista que as famílias eram sempre numerosas, essas mulheres precisavam trabalhar desde muito cedo para garantirem seus próprios sustentos. A pesca tornou-se sinônimo de uma independência financeira, e a garantia do respeito dos demais moradores para com o trabalho dessas, mesmo que o serviço da pesca fosse uma atividade considerada masculina, por ser um trabalho braçal e com muitos riscos para o gênero feminino, não afetava em nada as mulheres Moraes, que mesmo com a presença do marido em casa, dominavam e dominam a arte de garantir seu próprio sustento".
REFERÊNCIAS
Esse trabalho é resultado a pesquisa: SARMENTO, E. B.. Mulheres e Autoridades em espaços Amazônicos: Estudos em Barcarena. In: XV Encontro Nacional de História Oral Narrativas Orais, Ética e Democracia, 2020, Belém-PA. Eletrônico, 2020.
FONTES ORAIS
MORAES Antônia. Pesquisa de campo. Pará. Cutajú-Açú, 2020. MORAES, Dulcinéa. Pesquisa de campo. Pará. Cutajú-Açú,2020. MORAES, Rosilene. Pesquisa de campo, Pará. Cutajú-Açú, 2020.

Prof. Enos Botelho Sarmento
É licenciado em História (UNIUBE), Especialista em História da Amazônia (FIBRA), e professor pela Secretaria Municipal de Educação de Barcarena. Barcarenaense, nasceu, cresceu e dedica-se à educação de alunos em seu município, Barcarena, no estado do Pará.
Enos, grata satisfação ter um texto relatando a trajetória das mulheres dessa parte da Amazonia!Melhor ainda é ter o texto de um conterrâneo no Historiando. olhar esses "furos", a maré; ler termos tão familiares pra gente como o matapi, jupati, o "panerão", enfim!
E os municipios hein!, Barcarena, Abaetetuba - mais conhecido como Abaeté.
Que saudade! sou paraense e seu texto é uma viagem a minha origem...Maravihoso!!!